Um “santo” que não tenha tido que enfrentar obstáculos terríveis, não foi santo

Auditório São Miguel, 21 de maio de 1983, sábado – Santo do Dia

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

 

[…] mencionou a opinião de uma pessoa segundo a qual essas imagens, das quais esses santinhos são uma reprodução, essas imagens devem ser assim porque com elas o povo se enleva. Ora, como as imagens são feitas para enlevar o povo, opina esse homem, então o resultado é que o povo de enlevando está atingida a sua finalidade. Para que conhecer agora como foram os santos de verdade? Contanto que o povo ame o Santo, está acabado.

Eu não conheceria um raciocínio mais errado do que este. Porque então em vez de ser o fiel que imita o Santo, é o Santo que imita o fiel. Porque os santos são propostos pela Santa Igreja para nós, para nós imitarmos. São pessoas excepcionais que a graça de Deus suscita, favorece, guia, bafeja, leva até o último instante da vida na perfeição do cumprimento da virtude, para que os outros conheçam e imitem também. E assim todos, tanto quanto possível, subam até este cimo da santidade que é o que o homem deve desejar nesta vida.

Agora, então, o Santo é um modelo, e a canonização é propriamente isso. É a declaração de que um santo está no Céu, e que foi provado pelo estudo de sua vida, pela análise de sua vida, de seus escritos, e foi provado depois pelos milagres que demonstram a interferência divina a rogos desse santo. Isto provado, fica proclamado pela Igreja – é propriamente a substância da canonização – que ele foi heroico nas virtudes teologais da Fé, esperança e caridade. Heroico nas quatro virtudes cardeais. E por ter sido heroico nestas sete virtudes foi heroico em todas as demais, porque as outras demais são projeções dessas virtudes que pintam a alma de varão.

Por isso a Igreja ao mesmo tempo que declara que eles então no Céu e que ali eles são intercessores muito potentes junto a Nossa Senhora e à Deus, os aponta aos fiéis para que os fiéis os imitem. Então o fiel deve ter diante de si o Santo como ele foi, para ele imitar o Santo. Se a gente faz um santo como o fiel gosta, a gente deforma o santo e faz um santo que procura imitar o fiel…

É o contrário! Nós, diante de uma verdadeira imagem de um verdadeiro santo, nós devemos tratar de ver do que é que gostamos e gostar daquilo, e se em algo nós sentimos uma dissonância, devemos então tratar de nos corrigir porque aquela dissonância é  má. Desenvolver as consonâncias, eliminar as dissonâncias: aí está o verdadeiro caminho que se deve seguir.

Isso assim posto, nós compreendemos bem a importância que há em se conhecer a verdadeira fisionomia dos Santos. E por isso também os senhores compreenderão, sem dificuldade, o entusiasmo que eu tive quando lá pelos idos dos anos 50, eu li numa revista europeia o anúncio da publicação de um livro alemão: “Das wahre Gesicht der Heiligen”  –  A verdadeira fisionomia dos Santos [de Wilhelm Schamoni], que era a compilação de todas as fotografias, máscaras mortuárias ou outras documentos seguros que nos davam a face historicamente certa do santo.

O livro não fez o que poderia ter feito, aí ficaria grosso demais, que era colocar as imagens erradas disso e as deformações fabulosas por onde a “heresia branca” tinha feito passar o mundo.

Eu me lembro que tive um exemplo disso muito característico, visitando a cidade da Pádua, na Itália. Fomos visitar essa cidade juntos, Dom Mayer e eu, estávamos a caminho de Veneza, e na ida e na volta de Veneza pousamos em Pádua. Em Pádua aliás, visitamos de modo inteiramente imprevisto, uma das maravilhas da Europa.

Nós estávamos esperando um ônibus que nos levasse a Veneza e havia um capelinha que resolvemos visitar ali na praça pública, porque demorava a vir o ônibus. E entramos e era uma famosa capelinha “degli Scrovegni”, que é toda pintada de alto e baixo por Giotto, com cenas da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. E onde se encontra – quase se poderia comparar a faixas de filme, mas dessa altura mais ou menos – e onde encontra o famoso quadro representando Nosso Senhor Jesus Cristo sendo osculado por Judas. Porque é uma das cenas da vida dELe.

E é uma verdadeira maravilha a tal capelinha! Estava sendo objeto de trabalhos científicos para secá-la, porque estava minando não sei que água do chão, que ameaça a adesão da tinta à parede, e, portanto, os quadros de Giotto. Então, estavam aplicando luzes, isso e aquilo outro. Mas como D. Mayer era bispo, e na Itália sabem respeitar muito um Bispo, foi possível entrar na Capela e visitamos a capela, super potentemente iluminada pelos refletores destinados a secar a capela, e outros trabalhos, nem sei mais o que  era. Era uma coisa mais do que complicada.

Mas naturalmente estando em Pádua eu fui à Basílica famosa de Santo Antônio de Pádua, fui assistir missa lá. e me lembro que vi numa coluna o quadro de um frade franciscano, possante, gordo, forte, talvez até tendente ao obeso, com uma cara séria, uma posição de mão de quem ensina. E eu perguntei a alguém: De quem é aquele quadro? – Uma pessoa que estava lá, que era da Igreja e que entendia, me disse: “Bem, esse quadro é o mais antigo quadro que há de Santo Antônio de Pádua, que alguns chamam Santo Antônio de Lisboa. Parece que foi pintado por Giotto ou por algum discípulo de Giotto, grandíssimo pintor italiano, foi pintado por um dos dois. É o que há de mais próximo historicamente, da fisionomia de Santo Antônio”.

Eu fui à sacristia onde havia uma fila enorme de gente, peregrinos, comprando toda espécie de objetos, rosários, objetos de piedade de toda espécie. E num box estavam vendendo essa fotografia do quadro de Santo Antônio, e num outro pequeno box as fotografias contemporâneas desse gênero de Santo Antônio. Eu comprei uma e outra para trazer para o grupo de São Paulo e comparar.

Era um Santo Antônio exatamente na linha desse São Sebastião, rosadinho, coradinho, uma carinha, uma musculatura que nunca se sentiu tensa, nem pela dor, nem pela indignação, nem pela preocupação, nem pelo risco, nem pelo esforço.

Quase imberbe, uma fisionomiazinha de porcelana, uns lábios que nunca disseram nada, apenas se abriram para beber uma papinha qualquer e os olhos olhando sem atenção um panorama ou um quadro, uma coisa qualquer diante de si – que realmente não merecia atenção – uma “sem saboria” sem nome! Isso é o que se vendia em quantidade, enquanto essa fotografia autêntica do santo se vendia um pouquinho para alguém que procurava ao lado.

Isso deve estar pelos nossos arquivos, não sei que fim levou. Mas a impressão eu me causou foi a mais profunda possível.

Quando eu recebi o anúncio desse livro, mandei vir da Europa. Mas o mundo inteiro ainda não tinha cicatrizado inteiramente da II Guerra Mundial, razão pela qual esses envios, essas encomendas eram lentos e eu tive que esperar etc.. Afinal de contas acabou vindo o livro. E eu me lembro que alimentou durante muito tempo as reuniões e as conversas da rua Martim Francisco aqui, quando eram só os sete iniciais ali, foi exatamente juntos conferirmos isso etc., e nos fortificarmos na tese de que – como foi muito bem dito aqui – há uma verdadeira escola que procura deformar, segundo o modelo várias vezes aludido aqui a respeito do qual não há tempo se fazer uma explanação especial, do Mons. Emery, que é isto arquetipicamente. E que “emeryzaram” a Igreja inteira.

Então acho que é muito oportuno que nós façamos aqui também a análise da figura desses santos. Mas eu tenho a impressão que vale pena para alguns de nós, que são aí os mais moços e que não têm tanto o hábito de analisar fisionomias, vale a pena analisar a fisionomia certa e a fisionomia errada, baseados nessa ideia: ninguém chega à santidade sem ter passado pelas provas mais duras porque aqueles a quem ama, Deus os faz sofrer.

De outro lado, ninguém pratica integralmente a virtude sem ter encontrado em seu caminho as piores inimizades. E às vezes são, essas inimizades, entre os mais íntimos. É numa Ordem religiosa, entre os irmãos de hábito; é numa família, entre os mais próximos; é num país, entre os conacionais, etc., se encontram as piores inimizades. É preciso, portanto, ter arrostado as lutas mais duras. Um santo que não tenha tido que enfrentar obstáculos terríveis, não foi santo. Porque o cumprimento do dever impõe, apresenta esses obstáculos. E quem não enfrenta esses obstáculos não tem santidade, não vale nada. Esse é o princípio.

O santo é um herói, é um atleta de Nosso Senhor Jesus Cristo. E por isso se diz que a definição de santidade é: virtude heroica. Os heróis de Nosso Senhor Jesus Cristo são os santos. As santas obviamente são as heroínas. E nós devemos procurar então nas fisionomias que nós vamos analisar, os traços do heroísmo, para encontrar ali as várias modalidades de heroísmo que há. E então nós aproveitarmos bem a projeção que vai ser analisada agora à noite.

Vamos então começar. […] [Cardeal Merry Del Val]

Aqui é um fidalgo, aliás, Santo Inácio o era também. Aqui é o Cardeal Merry del Val. De duas grandes famílias, uma família inglesa ou irlandesa, eu não me lembro bem, e outra uma família espanhola. Os pais dele eram marqueses e eu conheci um irmão dele, embaixador espanhol se não me engano no Peru, que era Marques Merry del Val. Os senhores notam o solidéu de uma seda de primeiríssima qualidade!

No todo dele, na impostação da cabeça, no pescoço, no modo superior de olhar, uma dignidade que parece pousar sobre o peito e “esplendorificá-lo” inteiro, ele tem qualquer coisa do verdadeiro nobre. Mas ele tem sobretudo muito do santo.

O Cardeal Merry Del Val, não sei se os senhores notam, tem o olhar muito fixo, que olha muito longe, muito longe. E uma expressão de força e de tristeza. Uma força aveludada e uma tristeza aveludada meia disseminada sobre o rosto. Muita resolução  –  todo o perfil dele é resoluto, as sobrancelhas de um homem resoluto, o corte da boca de um homem resoluto. Mas o olhar tem qualquer coisa de doce, mas que olha bem para longe e diz o seguinte: “Vejo a tua infâmia e ela me entristece, mas eu te enfrento e te combato!”

Foi esse homem que foi que insistiu quando o Imperador Francisco José, da Áustria, mandou o Cardeal de Praga que estava no Império dele, vetar o nome do Cardeal Rampolla del Tindalo para Papa, o conclave elegeu então São Pio X.

Quando a votação de São Pio X começou a subir, ficou patente que ele acabaria sendo eleito Papa, e o Cardeal Merry Del Val conta nas memórias dele que ele fazia parte do conclave, não como cardeal – foi São Pio X que o nomeou Cardeal, mas como camareiro de alguns daqueles cardeais.

E que ele entrou na capela do conclave e que deu com o então cardeal Sarto, patriarca de Veneza, futuro São Pio X, rezando aos pés do Santíssimo e com as lágrimas escorrendo. E ele então se ajoelhou junto ao Cardeal e disse: Eminência, coragem, mas é preciso aceitar.

Ele não disse qual foi a proposta de São Pio X. Daí a pouco veio o recado: Cardeal Sarto tinha sido eleito e tinha aceito o pontificado. Declarou “acepto in cruce”, eu aceito crucificado, mas aceitou.

E logo, ele que quase não conhecia o cardeal Merry del Val, entendeu com quem ele tinha que tratar e convidou o cardeal para secretário dele, que era uma altíssima função! Abaixo do Papa, a mais alta. Ele convidou de cara. O Cardeal aliás já era bispo e foi convidado de cara para secretário de Estado e serviu durante todo o tempo.

Ele conta como São Pio X foi assassinado, nas memórias dele. Ele não fala de assassinato, ele diz só que o papa estava doente e com uma gripe, uma coisa que não causava maior preocupação, e que assim ele deixou o Papa quando foi para a casa dele dormir, que na manhã seguinte ele foi acordado depressa, o papa estava num estado muito esquisito.

Ele foi lá e encontrou o papa acordado e com todos os sinais de lucidez, mas sem conseguir falar. Então o papa quis escrever uma palavra a ele; ele arranjou para o papa o que escrever, lápis, com certeza, e papel, o papa tentou escrever, não conseguiu e fez assim um sinal. Então não falou mais.

Ele tem nas memórias dele essa frase curiosa: “Ninguém saberá jamais o que naquela noite – que fora aquela entre ele deixar São Pio X e São Pio X estar assim – São Pio X morreu”.

Algum tempo depois, ele mesmo escreve, São Pio X estava tão isolado e tão mal visto, em consequência ele também, que ele sabia que ele perdendo São Pio X, perdia tudo no mundo e que ficava completamente só.

Realmente Bento XV que meio depois conservou-o como cardeal porque não podia demiti-lo sem mais nem menos, mas deu para ele um cargo secundário de guardião da Basílica de São Pedro. Ele cuidou da Basílica de São Pedro magnificamente, restaurou, arranjou, exerceu o cargo na perfeição.

Ia gente vê-lo, tão majestoso e tão santo ele era que havia uma certa hora do dia em que ele devia rezar o ofício com os cônegos da Basílica, numa capela lateral, quando ele atravessava a basílica a pé e se inclinava diante do altar, havia gente para vê-lo passar e para venerá-lo.

Em certo momento, a guerra já tinha terminado, e Bento XV era então o papa… ou era Pio XI, já não me lembro bem, em certo momento ele começou a sentir incômodos gástricos, foi ao médico e o médico diagnosticou apendicite, e apendicite tinha que ser operada. Naquele tempo era uma operação de um certo perigo, a cirurgia progrediu depois. E como os senhores estão vendo pela fotografia, era um homem já de idade.

Mas ninguém duvidava do êxito, porque como os senhores também veem pela fotografia, um homem forte. Ele foi levado para a mesa de operação e operado por um dos maiores cirurgiões de Roma.

Qual não foi a surpresa dos familiares que esperavam, como se costuma fazer as famílias, do lado de fora da sala de operação, o resultado da operação, e depois de Roma inteira, quando veio a notícia de dentro da sala de cirurgia que o Cardeal tinha morrido.

Razão da morte, a razão mais espantosa do mundo foi alegada, e a razão foi essa: que o Cardeal usava uma prótese dentária que não tinha tirado, e que os médicos também tinham se esquecido de ver se ele usava alguma prótese dentária, e que por causa disso a prótese em certo momento descolou do céu da boca e rolou pela laringe adentro e que encalhou e ele morreu.

Bem, meus caros, está terminado…

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Nota: Para outros comentários a respeito do Servo de Deus Cardeal Rafael Merry del Val, vide:

O Cirineu de Pio X

Altivez é harmonioso complemento da humildade (Cardeal Rafael Merry del Val y Zulueta) / O próprio da graça é não destruir a natureza, mas elevá-la e santificá-la

Cardeal Merry del Val: domínio da alma sobre o corpo, contrário da “espontaneidade” da IV Revolução

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